O produtor rural Albeni José Meireles, de 49 anos, tomou a decisão de dar seu primeiro passo rumo à automatização da lavoura de 44 hectares, na zona rural de Luziânia, cidade goiana a 57 quilômetros de Brasília, onde seus pais fincaram raízes.
Após dois anos fazendo economias e negociando com a empresa local de energia, montou um pivô de irrigação. A tecnologia não existe nas outras pequenas propriedades do entorno. Ele estava convicto de que o pioneirismo se converteria em segurança nas estiagens e ganhos.
Sem a infraestrutura pública para ligar o equipamento à rede de energia, o equipamento de 190 metros de comprimento não passa hoje de um prejuízo de R$ 200 mil. Da janela de casa, Meireles contempla o paradoxo do pivô, seco, estacionado sobre o milho que sofre com a falta de chuva.
“Abri mão de parte da minha renda para montar e até agora nunca pude usar”, desabafa. “Queria ter mais rentabilidade e um futuro melhor para a minha família.”
Incrementar a tecnologia na propriedade não tem sido vantajoso para Meireles. A internet banda larga que contratou logo foi interrompida. Uma lavoura de eucalipto bloqueou o sinal e o provedor abriu mão de providências.
A conexão veloz poderia facilitar pesquisas, dar acesso a novos fornecedores e permitir uma formação melhor aos quatro filhos. “A gente precisa ver preços, pesquisar equipamentos. E meus meninos, na pandemia, precisam para estudar”, observa.
Os obstáculos, como os enfrentados por Meireles, para um campo mais tecnológico fazem com que apenas 23% dos agricultores tenham acesso à internet em toda a operação agrícola, segundo pesquisa da McKinsey & Company.
O número cai para 13% em alguns segmentos, como o de algodão e o de grãos em algumas regiões.
Outro levantamento sobre tendências, desafios e oportunidades para a agricultura digital, feito em parceria entre Embrapa, Sebrae e Inpe, mostrou que 57,5% dos produtores têm alguma rede social, incluindo o WhatsApp, e a usam para obter ou trocar informações sobre a propriedade.
O estudo, no entanto, revela que a inserção tecnológica, em geral, não acompanha as etapas mais profundas dos processos produtivos.
Além da agropecuária de grande escala, que responde pela maior parcela da riqueza produzida pelo País, é um Brasil rural pobre e médio, alicerçado em técnicas primitivas, que produz o alimento que vai parar nas mesas das famílias.
País afora, milhões de pequenos produtores têm na vida enraizada no campo o único incentivo para encarar a desigualdade e o atraso tecnológico.
Dos 5 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil, 76%, isto é, 3,8 milhões, não dispõem de processos tecnológicos de produção e escoamento da safra.
Estudo da Embrapa que aponta que dos 3,8 milhões de estabelecimentos que geram renda, 2,5 milhões (ou 67%) são propriedades consideradas pobres, geridas especialmente por famílias dissociadas de grandes federações do setor e dos processos de modernização, e com renda mensal inferior a dois salários mínimos (hoje, R$ 2.200).
Na outra ponta, não chega a 25 mil o total de estabelecimentos que geram 52% do valor bruto da produção agrícola. São as fazendas exportadoras, com renda mensal superior a 200 salários mínimos (R$ 220 mil).
Gargalos na energia. Aos 36 anos, Fernando Meireles Bueno é considerado por pequenos agropecuaristas do entorno de Silvânia e Luziânia um fenômeno da produção leiteira. As 12 vacas compradas pelo pai em 2007 hoje são 100 produzindo cerca de 42 mil litros por mês.
No caso de Bueno, o problema tecnológico está imbricado com o da energia. Para alcançar os resultados que renderam o reconhecimento, ele precisa lidar com apagões de 30 horas que queimam equipamentos e exigem gastos extras com um gerador alimentado a diesel.
A imprevisibilidade frustra o produtor que se orgulha do cuidado com cada real de despesa.
“Temos sempre que estar aprendendo. Uso YouTube, às vezes temos cursos. Tem hora marcada para entrar e assistir. Tendo energia, tem internet. Só que não tendo energia você não tem nada.”
Nos 24 hectares que reserva para pastagem, todo o controle do gado, do cruzamento de espécies e até da produção individual das vacas é feito em um caderninho amarelado de folhas desfalcadas. A tarefa toma tempo, é suscetível a falhas, mas não pode ficar à mercê da falha da energia.
Tecnologia e crescimento. Atribuem-se mais de 60% do crescimento agrícola nos últimos anos à melhora tecnológica, que não é restrita à utilização de maquinário moderno. Desenvolvimento de sementes, acesso a insumos com preços menores, sistemas para venda com preços competitivos, meios para escoamento das produções, formação educacional de produtores e mecanismos para acesso rápido a crédito também fazem parte.
A dinâmica de alguns desses itens forma o que o pesquisador Eliseu Roberto de Andrade Alves – considerado o “pai da Embrapa”, na definição do ex-ministro Delfim Netto – chama de “imperfeições de mercado”, que penalizam os milhões de pequenos.
Estes acabam comprando insumos mais caros e vendem a preços mais altos. Assim, têm dificuldades em incorporar tecnologias, e a desigualdade se aprofunda.
“A tecnologia só é adotada se for lucrativa. Com essa diferença de preços, a tecnologia que está tocando os grandes produtores, levando a agricultura brasileira a salvar a economia brasileira acaba não sendo adequada aos pequenos. Ela não traz lucro não pela tecnologia em si, mas pelas imperfeições do mercado”, analisa.
Para o especialista, a desigualdade tende a piorar, mantendo milhões de famílias de pequenos produtores em condições adversas
“Têm algumas políticas do governo, mas o que acontece basicamente é que a solução ainda não é suficiente para colocar os pequenos produtores para adotarem tecnologias e seguirem no caminho da grande produção. É um desafio a vencer: integrar na agricultura moderna os milhões de produtores que ainda estão à margem”, frisa.
O risco de aprofundamento da desigualdade é apontado pela própria Embrapa. No planejamento da entidade para 2030, o alerta: a tendência é a de que o quadro se torne irreversível. “Essas tendências vêm caracterizando o desenvolvimento agropecuário brasileiro em praticamente todos os seus subsetores.
Nos próximos anos, esse movimento de concentração da produção (e da riqueza em geral) no campo brasileiro continuará sendo observado ainda mais, tornando-se uma tendência irreversível”, destaca o documento.
“E, sem dúvida, esse processo econômico concentrador produz implicações diretas para a ação governamental, incluindo a pesquisa agrícola, e também para a disseminação das novas tecnologias.”
A falta de foco em avanço tecnológico nas pequenas e médias propriedades rurais não põe em risco, aparentemente, o espaço obtido pelo agronegócio brasileiro no mercado internacional, baseado nas commodities.
Mas expõe uma clara oportunidade desperdiçada de avançar em muitos setores do comércio agrícola externo. Por tabela, o País ignora debates de problemas como o êxodo rural, o empobrecimento de municípios do interior e mesmo conflitos de concentração de terra e assentamentos sem conexão com a rede de comercialização.
O bom exemplo
As características da produção no Jaíba, município no norte de Minas Gerais, próximo à Bahia, ensinam que pequenos produtores podem ter papel significativo na economia e no desenvolvimento regionais
Os cerca de 100 mil hectares são resultado de um projeto de agricultura irrigada iniciado ainda nos anos 1970 e que definiu as estratégias do que virou a capital mineira do agronegócio, com destaques em produção de banana, limão e manga
Pequenos, médios e grandes produtores se auxiliam, e os menores saem favorecidos com tecnologia, expertise e infraestrutura. “Existe uma estrutura de apoio a eles em termos de orientação tecnológica.
Com o passar dos anos, eles vão se tornando autossuficientes e profissionais. Era isso que se queria há mais de 40 anos”, afirma Elias Teixeira Pires, consultor em agronegócio e produtor.
Teixeira Pires ressalta, porém, que experiências como a do Jaíba, semelhantes também às das regiões de Petrolina (PE) e de Juazeiro (BA) são exceções.
“O Jaíba tem uma organização de pequenos produtores que demonstra claramente o avanço com o uso da tecnologia. Mas isso é pequeno comparado com o Brasil como um todo. É expressivo regionalmente”, comenta.
O limão que nasce nas terras do Jaíba, em propriedades pequenas de até 25 hectares, vai parar na Alemanha e na Inglaterra. No mercado interno, os cerca de 26 produtores da Associação União dos Fruticultores do Jaíba e Região conseguem cerca de R$ 10 pela caixa, com 25 kg. Na Europa, R$ 40.
O representante da associação, Marlon José Meira Jardim, conta que o perfil associativista e cooperativista dos produtores permite que, juntos, se desenvolvam, contratem tecnologia e mantenham padrões de qualidade que seduzem consumidores que pagam mais caro pelo limão.
Embora pequenos, eles têm um aparato tecnológico à disposição, desde provetas para medir defensivos com precisão, medidores de pH e pulverizadores atomizados que economizam gastos e mantêm a fruta cítrica dentro dos padrões ambientais, econômicos e sociais exigidos no mercado externo.
“Quando você tem melhor rentabilidade, você começa a melhorar a tecnologia. A aspersão vira microaspersão, mais eficiente, você melhora o pulverizador. Uma coisa vai puxando a outra”, afirma Jardim.