Com paralisia cerebral, João conta em livro como conquistou a liberdade em cima de uma moto

Uma amizade de quatro décadas norteou praticamente toda a escrita do livro “João da Moto”, de Lenilde Ramos. Com expectativa de lançamento para o primeiro semestre deste ano, a obra traz um relato sobre o amigo de longa data da escritora, João Carlos Estevão de Andrade, conhecido também como João da Moto.

Carioca de nascimento, mas campo-grandense desde os sete anos, João teve paralisia cerebral ao nascer, em razão da falta de oxigênio em um parto que demorou demais. “A ideia de contar a vida do João vinha sendo amadurecida há uns 10 anos ou mais, por ambas as partes. Ele é a fonte principal, pois é muito ligado em história, memória, dele e do cenário em que vive. João conhece todo mundo”, define Lenilde.

Os dois se conheceram em 1980, nos tempos da bicicleta. “A moto é o símbolo da militância social do João entre as pessoas com deficiência. Na verdade, sua luta pela independência pessoal começou na adolescência, quando ganhou do avô Manuel Estevão a primeira bicicleta. Desde criança, ele sempre foi ligado em carros e máquinas. Com a bicicleta começou a circular pela calçada de sua casa e, com o tempo, foi aumentando o circuito pela cidade”, relembra a amiga.

Cada veículo que João dirigiu foi importante para a sua trajetória e para a transformação de quem estava à sua volta. “Tive oportunidade de acompanhar ou participar de alguns de seus projetos e romper a barreira de sua imagem física para conhecer de verdade a pessoa fantástica que ele é. Ele não podia, de jeito nenhum, concluir sua trajetória neste plano material sem compartilhar sua história. E agora ela está aí nesse livro”, relata.

Para João, Lenilde é uma parceira que compreendeu seu desejo de liberdade logo no início.

“Eu me lembro de nossa primeira produção profissional, no começo dos anos 1990, quando em uma matéria para o jornal da LBA [Legião Brasileira de Assistência] ela colocou o título ‘Eu quero ser eu’. A frase é do livro de uma amiga dela de Corumbá, a Marlene Mourão. Quando li essa frase, senti que Lenilde captava o anseio que tinha dentro de mim, que é o da grande busca de vencer a atitude de tutela das pessoas para comigo e a conquista de minha autonomia”, conta.

Mobilete

Além da bicicleta, João teve duas mobiletes, que o ajudaram a circular pela cidade em uma época em que a pessoa com deficiência era vista como alguém impossibilitado de conquistar a independência. “Depois delas, partiu para a primeira moto. A primeira luta foi com o Detran para conseguir a carteira de habilitação. Antes já havia travado outras lutas, para conseguir a carteira de identidade e outros documentos. Para conseguir esses documentos teve que provar que não era deficiente mental”, frisa Lenilde.

O nome do livro é justamente uma homenagem a essa trajetória em cima da moto, onde João pôde se tornar autônomo e intensificou a militância. No currículo, segundo a escritora, “foi o motivador e um dos fundadores do primeiro Conselho Estadual da Pessoa com Deficiência, fez intercâmbio com diversos outros conselhos, trabalhou como voluntário na Pestalozzi e construiu uma trajetória dentro dessa área, não só em Campo Grande, mas também em outros estados brasileiros. Atualmente, é membro do Conselho Científico da Federação Nacional das Associações Pestalozzi”, pontua.

Para Lenilde, todas essas facetas estão presentes no livro, que busca ao máximo fugir do estilo piegas e de autoajuda. “Procurei contar a vida do João o mais real possível, principalmente fugindo de um tom piegas e sem transformar em um tratado de autoajuda. Ali está um menino superesperto, que tentava driblar suas limitações físicas para andar de rolimã na calçada da Afonso Pena, que prestava atenção em tudo, que sempre gostou de ler e de aprender, que conseguiu dar os primeiros passos com 15 anos, que encontrou na militância social uma forma de mostrar que ele e toda a classe de pessoas com deficiência são muito mais do que sugere a aparência física”, reflete.

Autonomia

O desejo de fugir desse estilo é do próprio João. “Não quero me apresentar como um exemplo, um herói. O título que a sociedade me impõe, de ‘pessoa especial’, me incomoda muito, na medida em que acredito que todos nós somos especiais a partir da individualidade de cada um”, frisa.

Para ele, a trajetória de se impor como alguém produtivo e autônomo foi cheia de desafios. “Eu encontrei muita dificuldade em me colocar como pessoa produtiva e capaz, porém com limitações motoras, por conta da atitude que concebe a pessoa com deficiência como alguém incapaz de ser autônomo. Minha busca sempre foi conquistar a maior autonomia possível, porque acredito que o homem está aqui para se auto construir, pois seu maior anseio é a liberdade”, pontua.

Segundo João, a ideia do livro é justamente propor uma reflexão sobre a deficiência e abordar os efeitos da paralisia cerebral. “A intenção em produzir esse livro foi aproveitar minha imagem pública para que as pessoas possam conhecer mais profundamente a natureza humana da paralisia cerebral. Esse quadro, aparentemente entendido como deficiência física, é muito mais abrangente que uma limitação de locomoção”, completa.